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domingo, 18 de dezembro de 2011

Leitura e Reflexão 2: A loja dos suicidas, de Jean Teulé

Sei que já falei deste livro, mas confesso que fiquei inconfromado com meu pouco rendimento no artigo anterior. Pois um livro que me causou tanta alegria, não poderia ficar retido naquele pequeno texto que, confesso, saiu confuso apesar de verdadeiro.
Então, ofereço aqui uma segunda leitura e reflexão deste maravilhoso trabalho de Jean Teulé, um autor que acabo de conhecer, mas que sem dúvidas vai para o hall dos melhores autores que já tocaram minha imaginação.
Aviso àqueles que não leram que este texto possui spoillers que poderão estragar a surpresa de futuros interessados. Neste sentido, sugiro que o leiam apenas depois de terem acesso à obra, que vale muito a pena.
Quando descobri que no Distrito Federal haviam encenado uma peça com base no livro, pensei: "por que esses caras não vieram ainda para cá?"

Aproveitem a leitura e voltem sempre.


A família Touvache vive cada dia de sua vida dedicando-se a sua loja incomum. Nela, artigos voltados ao público suicida são fornecidos, desde cordas para se enforcar, até venenos dos mais variados tipos, para aqueles que buscam uma morte lenta e pacífica, digna dos mais belos dramas. Condizentes com os produtos que fornecem, os lojistas trazem consigo uma visão de mundo fria, distante e pessimista. O planeta é um lugar condenado, a vida é uma eterna tragédia sem sentido, logo, seguir o caminho da aceleração da morte não é uma covardia, nem mesmo um pecado, mas sim uma forma honesta de encarar a realidade das coisas. Apesar dessa filosofia, os Toucache, diferentes de seus clientes, são concebem o suicídio para suas vidas. Para a matriarca da família, eles possuem uma missão: a de ajudar aqueles desgostosos com a existência a encontrarem um final rápido e eficiente. Sem os Touvache, essas pobres almas jamais encontrariam o fim que desejam e por este motivo que, apesar de muito quererem, estes não podem cometer suicídio. Pois se eles morrerem, quem tomará conta da loja?

Divergindo totalmente desta maneira de estar no mundo, o jovem Alan, caçula dos Touvache, é a ovelha negra (ou branca) da família. Tudo para ele é motivo de alegria: se assiste a uma tragédia, onde milhares de pessoas morrem, ele prefere dar sua atenção àqueles que foram capazes de sobreviver; se os clientes da estranha loja já desistiram da vida, ele busca encontrar para tantos um novo motivo para existir; e se sua família prefere permanecer estagnada na morbidez de seus ideais que já atravessaram gerações, ele luta para a criação de novos potenciais para seus membros e para o estabelecimento que eles tomam conta. É claro que não preciso dizer que tal forma de pensar não agrada nem um pouco a sua família. Mas com o desenrolar a história, percebemos que a visão cor de rosa do mundo de Alan, além de irritante, é também assustadoramente contagiante.

Todavia, algo surpreende acontece ao se chegar ao fim do livro. Pois de todos os familiares, cada um com um potencial maior de entrar para a lista dos suicídios anuais do Estado, é Alan aquele quem toma cabo da própria vida. Inebriado pelo belo trabalho que realizou, trazendo alegria e esperança para a sua família, e vendo em sua obra o sentido de sua existência ser realizado, ele resolve enfim, que chegou o final de sua história...



O suicídio é um dos maiores tabus de nossa sociedade. Um problema que nada mais é do que a ramificação de outro ainda maior, que exigiu do ocidente vários esforços de compreensão: a razão da morte. A filosofia, a teologia, a arte, a psicologia, o mito, não são poucos os investimentos para se explicar essas que são questões existenciais poderosas: “qual o sentido da vida?”; “por que morremos?”; “para onde vamos?”; “existe lugar para ir?”. Tudo o que sabemos é que um dia iremos morrer. E com base nesta máxima, construímos nossas existências de forma que elas tenham algum sentido para nós, seja nos filiando a religiões, partidos, filosofias de vida ou outra forma que torne o nosso estar no mundo algo um pouco mais seguro, e onde não nos concebamos apenas como meros acidentes da natureza, sem razão para sermos e sem objetivos para estarmos.

Desta forma, se a morte nos parece como um inevitável fim, que exige de nós um esforço para fazer a vida valer a pena, não é a toa que o suicídio acaba por ser encarado como algo pecaminoso, fruto da ação de covardes ou de pessoas que não possuem a força necessária para encarar a existência. Logicamente que esta não é uma visão homogênea, pois o movimento ultraromântico, por exemplo, concebia o suicídio como uma prova de coragem. Pois a partir do momento em que a existência não tinha sentido, livrar-se da vida, escapando de um mundo corrompido e vicioso, era a forma de ascender à verdadeira forma de existir. O mundo puro dos espíritos. Contudo, o que acho de mais valoroso em “A loja do suicidas” é uma nova visão deste ato que é tão praticado, mas tão pouco entendido.

Longe das visões pessimistas que alimentam as duas vertentes acima mencionadas – tanto aquela que concebe o suicídio como um ato pecaminoso ou covarde, como a romântica que entende o suicídio como algo necessário em um mundo degenerado como o nosso – o livro de Toule nos faz pensar de uma forma totalmente nova sobre esta questão...

Quantas pessoas será que já puderam ter a alegria de, em seu leito de morte, olhar para trás e pensar: “valeu a pena”, “consegui tudo o que eu quis”, “posso ir em paz”. Eu não possuo instrumentos capazes de dar uma resposta precisa, mas tendo a entender que esta não seja uma alegria de todos. Fazer a vida valer a pena. Esta é a tópica de quase todos os discursos motivacionais, dos livros de auto ajuda e dos filmes alegres que se alastram em nossos cinemas. Esse é o objetivo principal, mas não possuímos uma fórmula clara e precisa, que nos garanta cem por cento de eficácia para atingir essa meta. Acaba que, ao fim e ao cabo, fazer a vida ter sentido passa a ser uma experiência pessoal, uma mistura de talento próprio com a sorte e o revés do acaso. Uma habilidade que não se aprende na escola, nem em livros ou em blogs.

Então, partindo deste pressuposto, como interpretar o suicídio de Alan? Ele, um personagem otimista, alegre, que havia conseguido aquilo pelo que tanto lutou: trazer esperança para sua família sombria. Alan havia conquistado seu objetivo, havia vencido apesar de todas as adversidades. Era um vitorioso, e se ele morresse naquele momento, sem dúvidas seria capaz de olhar para trás e dizer: “valeu a pena”, “consegui tudo o que eu quis”, “posso ir em paz”. E foi exatamente isto que ele fez...

Viver após isso, para Alan, seria entrar mais uma vez no jogo da vida. Ter de encarar essa realidade que nos é tão caótica, na medida em que, por mais que queiramos e nos preparemos, não somos capazes de controlar tudo o que nos acontece. Isso, em certa medida, pode ser assustador, mas sem dúvidas dá à vida aquilo que ela tem de mais interessante: sua maleabilidade. A capacidade de fazermos dela aquilo que queremos dadas, é claro, as possibilidades que nos aparecem. Alan já havia vencido, já havia conquistado tudo o que desejava. Então, viver para ele também significava algo sinistro. Significava poder perder tudo aquilo que havia conquistado. Não apenas pela possibilidade de sua família voltar ao estado mórbido em que antes se encontrava, mas também porque ele mesmo, a partir daí, poderia preso em uma rotina, sem a capacidade de criar outro grande objetivo que valide seu estar no mundo.

Podemos dizer que Alan foi um covarde, que desperdiçou sua vida logo quando tinha tudo pela frente. Ou então dizer que ele foi corajoso, na medida em que saiu pela tangente de um mundo que, a partir dali, não poderia ter mais nada a servir para ele. Eu, pelo contrário, gosto de pensar que Alan, como todos nós, fez algo simples e corriqueiro para todos nós: uma escolha. A escolha entre viver ou morrer. A partir do momento em que havia chegado ao fim de seu projeto de vida, ele teve a oportunidade de decidir se encerraria ali e sairia por cima, ou criaria ele mesmo um nodo projeto e a partir do momento em que o iniciasse, estaria mais uma vez no eterno jogo da vida, usando e abusando da sorte e lutando contra o revés, relacionando-se com as pessoas mais interessantes e tolerando aqueles cuja presença o incomodassem, ser feliz e triste ao mesmo tempo. E, é claro, abrindo mais uma vez a oportunidade para saber se, ao fim, irá vencer ou fracassar.

sábado, 10 de dezembro de 2011

Entre o riso e o sério

Normalmente, quando queremos atribuir o caráter de verdade ou de importância àquilo que fazemos, costumamos dizer que tal coisa é séria. E se algo não nos parece correta ou digna de atenção, perguntamos: “por acaso isso é brincadeira?” Em algum momento da história, o ocidente pareceu atribuir ao sério um caráter de importância, de algo que tem seu valor, que é digno de nota e que deve reger as atividades nobres da vida. Em contrapartida, o riso, o cômico, é apresentado como o campo da brincadeira, da leviandade e das coisas sem importância. O riso faz parte do universo popular, com suas festas, pulsões e subjetividades, enquanto o sério está no campo do trabalho, do pensamento e da racionalidade.


O livro de Umberto Eco, “O nome da rosa”, nos aparece como um bom exemplo desta tendência. Para aqueles que leram, ou ao menos assistiram ao filme, nota-se bem claramente ao final como o problema da comédia fazia parte da reflexão teórica dos pensadores da idade média. O riso, atribuído ao diabo, representa aquilo que um homem culto jamais deve fazer. Pois, de acordo com alguns teólogos da época, como Jesus nunca emitiu uma gargalhada e estas ao longo dos evangelhos só foram pronunciadas por aqueles que debocharam do Cristo na cruz, duvidando de sua santidade, logo o cômico nada mais é do que uma criação do Diabo. Uma maneira de afastá-los do caminho de Deus. Desta maneira, o fato de Aristóteles, um filosofo altamente respeitado na baixa idade média, ter escrito um tratado em que concebe a comédia como uma manifestação artística digna de reflexão filosófica, é alvo de preocupação. Pois ao homem erudito, segundo alguns, não deve ser permitido rir. Pois este o apresenta à descrença e trabalha com a mentira, a falsidade.

Tal pensamento pode parecer exagerado, mas se pensarmos o papel da comédia em nossos dias, seja no uso de termos como os expressados no início do ensaio, seja em alguns tratos que damos a ela, percebemos como esse entendimento ainda se mantém em nossa sociedade. Em nome do riso, basicamente se pode tudo. Uma ofensa não é ofensa se for piada. Uma palavra de mau gosto é aceita se vier revestida de brincadeira. Em nome do humor, basicamente podemos dizer que uma mulher feia deve agradecer ao ser estuprada. Acho que alguns devem saber do que estou falando.

O campo do riso esconde sim um pouco de descrença. Já falei isso em outro artigo – “Ceticismo e comédia” – pois um ser humano não é capaz de rir daquilo que ele considera importante ou verdadeiro. Contudo, o efeito do riso deve sim ser encarado como algo sério. Através da comédia, podem-se produzir coisas importantes. Pode se produzir uma mensagem crítica, uma mobilização social. Contudo, também se é possível manifestar comentários dos mais destrutivos e ofensivos.

Se á uma coisa que a personagem Coringa me ensinou, foi que o riso tem sim algo de muito sério. Sério em vários sentidos. Tanto por ter um lado obscuro e sinistro, como o do antagonista de Batman, mas também pode ser um grande produtor de conhecimento. Uma maneira de produzir um discurso intelectual que toda a pompa e todas as regras do discurso sério e científico são incapazes de fazer. A liberdade dada ao humor, assim como todas as liberdades aos quais nos oferecemos tem seus usos e seus abusos, suas potencialidades e seus limites, e desta maneira encarna o exemplo de uma faca, que nas mãos de um médico é capaz de salvar vidas enquanto que utilizadas por um assassino podem causar estragos no corpo e na alma de suas vítimas.

Neste sentido, proponho com este artigo/ensaio que façamos um manifesto em favor do riso. Um movimento intelectual que faça as pessoas olhares o humor sim como algo sério, tanto em suas capacidades quanto em suas implicações para a vida em comunidade.

terça-feira, 29 de novembro de 2011

Leitura e Reflexão: A loja dos suicidas, de Jean Teulé.


 
Sinopse
Imagine uma loja onde são vendidos, há dez gerações, todos os produtos possíveis e imagináveis para se suicidar. As opções são infinitas: desde bombons envenenados até balas de revólver e cordas de enforcamento. Esta é a famosa Loja dos Suicidas da família Tuvache. Determinada a manter sua tradição e excelência de atendimento e qualidade, essa pequena empresa familiar prospera na tristeza e no humor negro até o abominável dia em que surge um adversário impiedoso: a alegria de viver!

A minha leitura mais importante do ano de 2011 e talvez uma das mais relevantes de toda minha vida, “A loja dos suicidas” de Jean Teulé é também um mistério para mim. Mistério porque, ao contrário de outros, eu sinceramente não consigo ter uma real compreensão do porque este título me agradou tanto. Eu realmente gosto do estilo humor negro, no qual este texto se insere, e também achei genial a temática central – uma loja que tem por função fornecer instrumentos com os quais as pessoas possam dar cabo de suas próprias vidas, e dentre as tradições da família guardiã da loja, encontra-se a regra de nunca dizer aos seus clientes “Volte sempre” -, mas estes são ainda assim pouco para descrever o impacto que o trabalho me causou.
O fato é que o livro brinca com a temática da morte, transitando de forma inédita e perigosa entre o universo do sério e do cômico. A loja dos suicidas tem como temática a morte, que é um tema dos mais sérios em nossa sociedade, um verdadeiro tabu, contudo, tem um enredo próprio do humor, a partir do momento em que mostra uma família bastante grotesca para nossos padrões e que vive em um tipo de realidade que nos estranha. Todavia também, esta família realiza seu ofício de forma muito séria, argumentando em favor de sua causa e apresentando considerações bastante racionais do porque e do como se trabalhar com suicídios. Enfim, um livro estranhamente atraente.
Longe de querer ser um trabalho de autoajuda, daqueles que desejam mostrar que a vida vale a pena, mas sem também cair em um dramalhão digno de pena, em que tudo da errado, o romance de Toulé trilha um caminho cercado de humor refinado e cenários sombrios. Uma experiência que se pode dizer, sem sombra de dúvidas, artística. E é neste ponto que o entramos no centro da discussão referente a esta obra. Pois ao contrário de outros trabalhos, em que a temática, o enredo, puderam me ajudar a pensar coisas interessantes, esta obra, em sua singularidade, me fez pensar justamente por não me fornecer os instrumentos racionais necessários para explicar com palavras precisas o que me atraiu acima de tudo.
Quando falamos da experiência da arte, pensar nela única e exclusivamente como uma forma de divulgar conhecimento é no mínimo pobre. E também, pensar nela como única e exclusivamente uma maneira de mexer com nossas emoções, também não comporta, não se sustenta. A arte, a boa arte, é aquela capaz de atingir, mais do que apenas a razão e mais do que apenas afetar a sensibilidade, nos tocar também na emoção. E essa tríplice investida torna a boa experiência artística algo completamente difícil de descrever em palavras. A única maneira de realmente se saber o que é, é vivendo essa experiência.
O livro de Teulé, sem dúvidas, me ajudou a pensar dessa maneira, pois ele me fez viver uma experiência que foi ao mesmo tempo noética (1-racional), estética (2-sensível) e patética (3-emocional). Ele me ajudou a pensar (1) na temática da morte; a refletir acerca do suicídio, um tema bastante polêmico e que já mobilizou inúmeros debates e estudos. Ele me fez sentir (2) aquele frio na barriga, quando alguns problemas anunciavam-se para os personagens principais; me ocasionou risos incontroláveis quando uma situação completamente grotesca se anunciava; e ele também me tocou (3) fundo, quando a sombra da desesperança se apresentava em alguns dos clientes dessa estranha loja.
Enfim, uma experiência artística que posso chamar de completa, que me afetou o raciocínio, os sentidos e o coração e que por isso torna-se tão difícil de se traduzir em meras palavras. Só desejo um dia ser capaz de escrever assim.

domingo, 13 de novembro de 2011

Quem é melhor: Edgar Allan Poe ou Stephen King?

Antes de qualquer coisa, digo que, diferente do que o título faz supor, meu objetivo neste artigo não é responder a esta pergunta. Até porque, não acredito que o valor de um trabalho artístico possa ser tão facilmente delimitado, principalmente comparando gerações de escritores tão distantes como estes dois. Então, escrevo este artigo mais para contribuir à velha discussão acerca da qualidade atribuída aos clássicos e aos contemporâneos, pois está é ainda, e acredito que sempre será, um debate mal resolvido.


Basicamente, as duas posições do debate possuem argumentos bastante sólidos quando buscam defender seus pontos de vista. Àqueles que procurariam defender Edgar Allan Poe, alegando que este autor é melhor, vão provavelmente alegar que Edgar inaugurou o gênero do terror, que foi o grande mestre sem o qual Stephen King jamais poderia começar a escrever. Edgar é um clássico, e como todo bom clássico, na concepção de uns, é intocável. É aquele autor tão monumental que sua presença faz sobra ao presente, e os escritores de hoje nada mais podem fazer do que contemplar sua grandiosidade e, na medida do possível, imitar o grande mestre.

Em contrapartida, os seguidores de King poderiam alegar que, sendo ele um discípulo de Poe – usando até mesmo um trecho de seu conto “A máscara da morte rubra” como epígrafe de uma de suas obras primas, “O iluminado” – tem sim contas a prestar ao antigo mestre. Entretanto, King, mais do que apenas copiar o professor, este aluno na verdade o aperfeiçoou. Afinal, não é uma tendência o discípulo superar o mestre? E os leitores de King ainda poderão dizer mais. Poderão alegar que King, com seu estilo cinematográfico, é capaz de prender mais a atenção do leitor, de causar-lhe mais espanto e comove-lo mais do que o discurso ultrapassado de Poe.

O que posso dizer em um primeiro momento é que ambas as concepções estão absolutamente corretas. O fato de Poe ser um mestre não muda o fato de que King, ao aprender com ele, não seja capaz de aperfeiçoá-lo. Mas isso também não muda o fato de que Poe é o mestre e que muito do que King é hoje, deve-se à ele. Então como resolver esse impasse? A resposta: não se resolve.

Tanto King, quando Poe já são considerados pelos leitores de hoje como autores importantes da literatura estadunidense. Contudo, é um erro comum atribuir à esses “gênios” um caráter universal e eterno. Como se Poe pudesse ser Poe e King pudesse ser King em qualquer tempo ou lugar. Como se o gênio desses autores fosse tão iluminado que eles ganhariam reconhecimento e destaque independente de onde escrevessem.

Se King houvesse nascido no séc. XVIII, seu estilo dinâmico e cinematográfico jamais seria possível, pois este estilo é um estilo atual, que não era possível na época de Poe. Da mesma forma, se Poe, com seu romantismo, fosse escrever para nós hoje, ele, como um homem do século XXI que escreve como um autor da idade moderna seria considerado ultrapassado e desinteressante.

Uma coisa que os estudos em História me ensinaram foi que cada coisa tem sua historicidade, ou seja, cada ser humano, cada visão de mundo, cada tendência artística possui sua certidão de nascimento e, muitas vezes, seu atestado de óbito. Logo, cada artista, vai tentar atender as exigências do tempo em que ele é lido. Tempo este que poder ser o seu de vida, ou anos depois, quando algum curioso acabar desenterrando-o da cova do esquecimento.

King é um homem do presente, de um tempo em que o cinema está em moda, que o terror é algo muito mais dinâmico, cheio de sustos e efeitos espetaculares. Poe é um homem do XVIII-XIX, embebido do romantismo de seu tempo, do mal do século, das ânsias que paixões humanas. Ambos são homens de seu tempo, que escreviam para leitores de seu tempo, e ambos foram bons para seus tempos. Talvez a única vantagem que Poe tenha sobre King seja o fato de ele ter nascido primeiro, e isso o permitiu escrever antecipadamente à seu sucessor. Assim como a única vantagem de King seja a de ter nascido depois, e com isso, tido a oportunidade de ter conhecido o trabalho de Poe para ter uma base e assim firmar a sua própria forma de escrever, algo que Poe jamais teve a oportunidade.





domingo, 9 de outubro de 2011

Definindo-se num estilo.


Definir-se, seja em um engajamento político, em um estilo de vida, em uma corrente de pensamento, é uma tarefa difícil, e talvez uma das mais desagradáveis para uns. Definir-se, para muitos, é um sinal de limitação, de castramento de suas potencialidades, na medida em que, ao escolher uma vertente, você acaba por abdicar de milhares de outras possibilidades que nem sequer foram experimentadas. No caso de se definir em um estilo literário, a coisa não funciona diferente. Ser um escritor de fantasia significa não ser um biógrafo, não ser um poeta, não ser um realista. Será mesmo?
Até que ponto, definir-se como algo seria uma privação de potencial, e até que medida essa não seria, na realidade, a condição de possibilidade de se manifestar essas potências? Pensemos, por exemplo, na adolescência de todos os seres humanos. Esta fase confusa, em que o “eu” de nós ainda não está formado. Em que somos tudo e nada ao mesmo tempo. Quando hoje pensamos de um jeito para amanhã já nos vermos flertando com outras ideias. A adolescência é sem dúvidas um estágio rico em experiências, em desejos de sensações novas e intensas, contudo, é uma etapa em que pouco se produz, em vistas de uma auto formação. Se discordam de mim, basta ver que a maioria dos adolescentes não sabem ainda o que querem da vida. Ainda estão experimentando, num processo de tentativa e erro que os levará, assim espera-se, para uma conclusão, seja em sua relação com a vida afetiva, suas amizades, escolhas profissionais e etc.
Vale ressaltar desde já que estas minhas considerações não são uma crítica ao modo de ser adolescente. Isso porque, tal postura de minha parte seria uma dupla hipocrisia. Primeiramente, porque sendo eu um escritor de fantasia contemporânea, reconheço nos jovens meu público-alvo. Em segundo porque, como todos sabem, mas fazem questão de esquecer, todos nós, adultos ou em caminhos de o ser, já fomos adolescentes. E este estágio é de vital importância para qualquer ser humano, pois funciona como um laboratório para nossas razões e emoções. O lugar central onde, discutindo com o mundo externo e os desejos internos, conseguimos, a trancos e barrancos, ter uma noção de quem nos somos e, quem sabe, para onde vamos.
Enfim, deixando esta leve digressão de lado, volto ao meu foco. Pois assim como a vida vivida, a vida literária de um escritor também possui sua adolescência. Aquele momento em que o futuro autor flerta com as mais variadas tendências, sente-se atraído por quase todas e começa a esboçar projetos em cada uma delas. Esta, como a adolescência da vida, é uma fase importante, mas que não tem sentido se ao fim não gerar a formação do “eu literato”.
E por que, afinal, é tão importante se definir? Por que não podemos ser essa metamorfose ambulante, ao invés de termos uma velha opinião formada sobre tudo? A resposta para estas indagações são simples e pragmáticas: porque cada escritor deve partir de algum lugar para poder chegar a um objetivo. O que quero dizer é que, a partir do momento em que você se define como escritor, elegendo uma dentre outras correntes para seguir, você na verdade está criando as bases para o seu fazer, seu ofício. E só a partir destas bases que você poderá chegar a algum lugar e produzir alguma coisa.
Flertar com o que é novo, adquirir novas experiências e ter a mente aberta para possíveis mudanças, são características muito positivas. Contudo, quem só flerta, experimenta e corre atrás da novidade jamais produz, nunca se estabiliza e acaba encarnando a metáfora do coelho que corre atrás de uma cenoura que nunca alcança. Quantos de nós, que queremos ser escritores, já não engavetamos dezenas de projetos de livros, pois não conseguimos concluí-los? Quantas vezes já iniciamos uma história cheios de expectativas e euforias para no fim nos desanimarmos e irmos para outra ideia que, naquele instante, se mostrou mais interessante e nos encheu das mesmas expectativas e euforias?
Esse é, infelizmente, o destino da maioria das ideias: ir par a gaveta. As vezes por causas externas ao escritor. Sim, pois somos seres humanos e estamos sujeitos às reviravoltas da vida. Mas outras vezes perdemos ideias porque ainda não chegamos à maturidade literária, e como um jovem que é capaz de apaixonar-se e desapaixonar-se de um instante para outro, essas histórias, antes tão encantadoras, perdem facilmente o brilho diante de algo novo.
Há uma tendência viciosa em se aproximar a concepção de alguém que se define, que tem uma personalidade formada, com uma pessoa cabeça dura, tradicionalista, que não larga seus valores. E isso nem sempre é verdade. Uma pessoa bem definida não precisa ser mente fechada. Pelo contrário, uma pessoa bem definida sabe respeitar a opinião dos outros, entende que seus valores e verdades não são únicos, e possui a maturidade necessária para reconhecer que tomou um caminho errado. E neste sentido, está sempre aberto para testar novas possibilidades.
Todavia, estas novas possibilidades são testadas quando as condições para elas se apresentam, quando ele tem ciência de que um novo caminho talvez seja o melhor e tenha chegado a compreensão que é hora de mudar. A mudança de alguém bem resolvido não vêm do simples modismo, da necessidade de ser aceito, ou da crítica dos outros. Um escritor que muda de gênero apenas porque um vende mais que o outro não poderá ser um bom escritor. No máximo um entretenimento. Agora, quando essa mudança resulta de uma necessidade de se colocar diante de novas experiências, então ele está pronto para uma nova aventura e assim, mudar de estilo.
Eu me defino como escritor de fantasia contemporânea, indiferente das críticas a este estilo, que alguns entendem como comercial, infantil, meros devaneios que visam a alienação de mentes imaturas. Reconheço-me nele pois é ele que me faz feliz, que me dá a satisfação de olhar para um livro e dizer com orgulho: “fui eu quem o escrevi”. Entretanto, não sou tão acomodado que não me veja fazendo outras coisas. Atualmente, até por uma influência de meus estudos em história, vejo-me um dia escrevendo algum romance histórico. Na verdade, tenho até uma ideia, que não irei divulgar por ainda não tê-la completamente amadurecido. Mas num futuro próximo é bem provável que eu a divulgue e arrisque essa mudança.
Pode ser que eu me arrependa e queira voltar para a fantasia. Pode ser que eu me descubra e não queria mais retornar. Ou pode ser que eu me descubra, mas ainda assim não abandone o mundo da imaginação livre. Emfim, nunca se sabe...
O futuro é imprevisível, por isso valorizo aqueles que preferem ser uma metamorfose ambulante, pois estes reconhecem o mundo incontingente em que vivemos. Mas deixo a dica de que até as metamorfoses ambulantes têm de ter seus momentos de estabilidade. Permitirem-se parar um pouco e contemplar a beleza do lugar em que estão. Beleza esta que jamais será vislumbrada se você viverem passando correndo pelos locais.

domingo, 18 de setembro de 2011

Narrar, quer dizer, dar sentido.

Quem somos, onde estamos e como chegamos até aqui? Perguntas que em algum momento da vida cada um de nós já fez. Alguns com maior freqüência, outros nem tanto. Quando olhamos para trás, vasculhamos o nosso passado, o que encontramos para dar sentido àquilo que somos hoje? É um exercício difícil, mas vou tentar executá-lo agora, em breves linhas.


Nasci em 1988, em um bairro da classe média carioca chamado Vila da Penha. Nunca fui uma criança que gostasse de ler. Livros em minha casa sempre existiram, mas nunca me chamaram a atenção, e com isso pude levar bem a vida sem nunca entrar no mundo da imaginação literária, ao menos, é claro, que me fosse obrigatoriamente necessário, como no caso das provas da escola. Contudo, aos meus 13 ou 14 anos, formamos em meu bairro o nosso grupo de RPG. Um jogo estranho, que aparentemente não duraria muito, mas que teve a força de nos cativar e viciar por longos anos. Todo dia era uma diversão. Eu e meus amigos éramos pessoas diferentes a cada dia, habitando lugares distintos, vivendo aventuras que nossas vidas de garotos e garotas do subúrbio jamais proporcionariam. Naquele momento, minha imaginação começou a ser desenvolvida. Primeiro de forma restrita, limitando-me a habitar o mundo que outras imaginações construíram, sejam pelas revistas compradas em bancas de jornal, sejam pelas fantasias de meus amigos, que se comprometiam em narrar a história. Então, chegou a minha vez de criar mundos. Agora a missão de construir um cenário, povoá-lo de pessoas, e fabricar o sentido para sua existência estava em minhas mãos. Como não fracassar em tal missão? Foi neste momento que a literatura se apresentou como uma resposta. De início, apenas com pragmatismo. Ela era um instrumento, que me auxiliava na gênese de minhas próprias idéias. Depois, transformou-se em um hobbie, então uma necessidade, e por fim um vício. Minha criatividade nunca antes esteve tão aguçada, todavia, tudo o que é bom dura pouco, e assim o nosso grupo de RPG se desfez. Mas as marcas deixadas por ele permaneceram: a literatura e a imaginação continuaram cada dia mais fortes. Toda noite, sonhava com realidades alternativas, construía cenários, enredos, tramas das mais mirabolantes, que, infelizmente, nunca viam a luz do dia, condenadas a viverem eternamente trancafiadas em minha mente. Até que certa noite, anos depois, quando a história de O Véu – que nem nome tinha na época – já estava completamente forma em meu consciente só que em vistas de se perder com o tempo e a falta de uso, uma amiga fez a grande proposta: “escreva esta história em livro que eu leio”. Um livro. Nunca havia passado por minha cabeça traduzir minhas histórias em livro. Seria possível? Sem querer, Nathália havia lançado as sementes do que hoje seriam os dois volumes da saga que ganha cada dia mais leitores na internet. Naquela época eu estava de férias, depois de passar pelo primeiro período de minha graduação em História, e resolvi usar esse tempo para escrever. Sentei um dia e comecei. Acreditei que não teria paciência de completar, mas tentei ainda assim. Na minha primeira experiência o prólogo estava pronto. Li e gostei, começando vislumbrar no horizonte a possibilidade de conclusão da obra. Foram três meses escrevendo. A história ganhava vida a cada batida nas teclas do computador. A emoção de dar razão aos personagens, a excitação de ver algo que até então sequer imaginava ganhar o mundo, ser concretizado em formato de páginas de Word. Enfim, ao final de fevereiro do ano de 2009, O Véu estava pronto, e então começou o que hoje posso chamar de minha vivência literária.



Acho que consegui resumir bem isso que chamei de trajetória literária, minha história, minha formação. Contudo, esta é apenas um pretexto para concluir a discussão aberta com o artigo anterior: Palavras. Entre a reprodução e a criação. Artigo este que, confesso, ficou um pouco corrido e impreciso. Peço desculpas por isso.

Mas o que chamo a atenção ao usar minha própria trajetória como pretexto de um ensaio é o fato de que, todo esse enredo, toda essa lógica que parece ligar meu jogo de RPG com a escrita de O Véu só pode ser construída através de um recurso que eu uso a todo o momento: narrar.

Olhando para trás, vendo aqueles acontecimentos do passado. Foi assim que as causalidades, que na época em que foram vividas não apresentavam nenhum sentido, puderam ganhar um enredo, uma trama, que fosse capaz de produzir uma história com começo, meio e fim. Enquanto eu jogava RPG, jamais imaginei que aquele hobbie bobo, uma brincadeira de criança, pudesse fazer do que sou hoje. Que pudesse me conduzir à criação de minha própria literatura. Assim como escrever O Véu jamais se mostrou para mim como uma forma de abrir as portas para o mundo das letras. Eu o escrevi sem saber o que vinha depois, sem saber que logo após criaria um blog, que o disponibilizaria na internet e, principalmente, jamais imaginei que seria tão amplamente lido e elogiado. Quanto a isto, só tenho o que agradecer.

Mas nenhum destes acontecimentos em sequência estavam dados para mim logo de início. Esse sentido, quem teve de atribuir fui eu. Olhando para trás, traçando uma linha que pudesse guiar de forma cronológica e linear, uma trajetória de vida que pudesse apagar as demais possibilidades que me lançavam no abismo da incerteza e assim me guiar por um caminho reto. Toda essa razão, esse nexo só pode ser construído através de um esforço de interpretação e, também, de narrativa.

Narramos o tempo todo, esta é nossa forma de dar sentido ao mundo. Os fatos isolados ganham conexão através de nossa fala, de nosso poder de imaginar as causas e efeitos. Nesse sentido, de alguma forma ou de outra, todos nós somos escritores. Todos nós sabemos criar uma história, pois a fazemos sem nos darmos conta disso. Pois isso é uma das milhares de potencialidades de ser humano: a de criar nexo, criar realidades, através das palavras.



quarta-feira, 14 de setembro de 2011

Palavras: entre a reprodução e a criação

Qual o poder das palavras? Seriam elas meras ferramentas que utilizamos como forma de narrar o mundo? É comum concebermos o poder da linguagem na sua dimensão de dar forma ao que percebemos com nossos sentidos. Descrevemos o mundo, o explicamos através de discursos e o reproduzimos com nossa voz e nossa escrita. Contudo, este é apenas um, e talvez o mais simples, trabalho que a narrativa tem a nos oferecer, pois mais do que apenas mimetizar o real, as palavras tem força própria, sendo capazes também de criar, elas próprias, realidades que vão além dos nossos sentidos.
E como isso acontece? Acontece, pois, nem tudo o que nós conseguimos pensar possui uma correspondência no mundo físico. Quando pensamos em coisas concretas, como cadeiras, árvores, pessoas e animais, nós podemos dizer que os conceitos que dão nomes a estas coisas são sim maneiras de descrevê-las, de nomear. Contudo, quando nos referimos a abstrações, aí o problema muda de figura. Pois a abstração não possui correspondência na realidade sensível a nós, mas sim são especulações de nossa imaginação, que tentamos, de alguma forma, traduzi-las a fim de ganhar entendimento. Neste processo, não apenas estamos reproduzindo uma verdade que está dentro de nós, mas sim conseguimos transmitir aquilo que está dentro de nós de forma a criar palavras que, ao fim e ao cabo, ajudaram a construir a realidade em que vivemos
Sei que está confuso, mas acredito que este exemplo possa elucidar: pensemos nos conceitos de belo e de feio. Ambos os vocábulos não existem na natureza como algo dado. Em cada parte do mundo, em cada tempo em cada grupo, as noções do que é bonito e do que é asqueroso, variam. Sendo assim essas noções são impossíveis de serem encontradas no mundo em sua inteireza. É desta forma que podemos conceber as palavras não como reprodutoras de uma realidade – visto que no caso da beleza, ela não existe como dado a ser analisado -, mas elas próprias criam uma realidade que nos atinge e constitui o nosso mundo. Todos nós somos capazes de dizer o que é feio e o que é bonito, pois estes valores já estão naturalizados em nossas vidas. Essas palavras já ganharam tal força que são uma realidade para nós, mesmo que estas não existam de fato na natureza. Quando dizemos que determinada pessoa é bonita, são nossas palavras que criaram essa beleza, pois elas são fruto de nossa intelectualidade.

Pensemos em outros termos e vamos problematizar as palavras “certo” e “errado”. Elas regem todo o código ético e moral de qualquer sociedade, mas não podemos dizer necessariamente que elas traduzem, descrevem ou representem algo que exista no modo como dado imanente. É correto agir assim, e errado agir desta maneira. Elas pautam a nossa vida, regem nossa existência e comandam a maneira como somos educados e educamos, mas elas não existem na natureza, não são possíveis de existir a menos que nós, seres humanos dotados de palavra, consigamos criá-las. Nós criamos para reorganizar o nosso mundo, para dar a ele uma cara que mais se pareça com a que nós queremos deles.
Palavras organizam o mundo, dão a ele um sentido. Elas o descrevem em determinadas situações, e o completam em outras, tudo isto é o poder da linguagem. É desta maneira que somos capazes, ao ler um bom romance, de nos transportarmos para dentro dele e sentir aquilo que os personagens sentem. Pois a literatura está criando um mundo para nós através de palavras, tal como nós fazemos o tempo todo, no nosso dia a dia, nomeando e inventando expressões que dêem conta de tornar a nossa vida mais fácil de compreender.

domingo, 28 de agosto de 2011

Sinônimos

A língua portuguesa é, sem dúvidas, uma das mais ricas de todo o mundo. Possuímos à nossa disposição uma gama de palavras, categorias e conceitos que são capazes de conotar e denotar as mais variadas formas de experiência humana, permitindo-nos escrever e falar de maneira a dar o máximo de sentido aos nossos enunciados. Contudo, uma língua rica e complexa também possui suas armadilhas e estas se apresentam justamente em sua infinidade de expressões, que por serem variadas e apresentarem sentidos diferenciados, acabam por confundir um possível usuário e às vezes deturpar algo que queria ser anunciado.
Por exemplo, quando falamos de sinônimos, que são palavras diversas que possuem significados semelhantes na comunicação. Contudo, vale atentar para o fato de que palavras semelhantes não significam necessariamente palavras iguais. Logo, até mesmo os sinônimos possuem informações diferenciadas, mesmo que em grau muito pequeno, que modificam o conteúdo de uma expressão quando apresentada de forma errônea. E este será o tema central deste artigo. Mas antes de prosseguir, quero informar que tal reflexão pega como gancho inicial a discussão antes apresentada no artigo “Realismo”, onde eu trabalho o conceito de realidade, problematizando seu uso na contemporaneidade.
Pois assim como o termo realidade, que usado no singular acaba por impor um conhecimento universalizante e impositivo sobre aquilo que é verdade e aquilo que é mentira, outras categorias, quando mal empregadas, seja inocentemente, seja de forma proposital, acabam por trazer impressões que não necessariamente exprimem as coisas. Quando falamos de determinadas experiências humanas, por exemplo, temos de ter em mentes que elas são vividas de forma plural, que são sentidas e interpretadas de maneiras diversas por diferentes pessoas.
Esse é um problema que eu tenho de lidar a todo o momento em meus estudos de história. Pois o senso comum tende e querer simplificar os eventos humanos e procurar soluções pragmáticas e diretas para eles. Então, quando chegamos a questões como, “a revolução de 30, foi boa ou ruim para o Brasil?”, ou “quem é o vilão no caso dos conflitos da Palestina?”, temos de inserir outra pergunta para que possamos chegar mais próximos de uma resposta conclusiva: “para quem?”
Quando pensamos problemas desse tipo, que trazem juízos de valores para análise, temos que ter em mente a particularidade de cada experiência. Pois em casos como esses, é óbvio que no caso da revolução de 30 existiram classes interessadas em romper com a dita “republica velha” e outras que não gostaram da resolução, assim como se perguntarmos para um palestino e para um israelita sobre a guerra que se trava entre eles, cada um enunciará um determinado juízo de valores acerca do acontecido. Nesse sentido, na minha concepção, muitas coisas podem ser relativizadas e por conta disso, o termo “realidade” poderia ser substituído para sua forma plural, “realidades”.
Contudo, não nos limitemos a esse único elemento, pois o uso de sinônimos que não necessariamente significam aquilo que deveriam é muito comum na língua portuguesa. Tal uso errôneo às vezes se deve a uma falta de arcabouço vocabular daquele que enuncia uma frase, mas em outros casos significa certa intenção em deturpar determinada fala.
Correndo o risco de gerar polêmica, vou utilizar aqui dos vocábulos “preto”, negro”, “afro descendente” e “crioulo”. Podemos concordar que em determinados campos semânticos, estes são sinônimos. Contudo, sabemos muito bem que eles estão longe de significar a mesma coisa, dependendo do contexto em que são empregados. Da mesma forma, podemos pensar nos termos “homossexual”, “pederasta” e “viado”. E também “mongolóide” e “daltônico” ou “leproso” e “sofredor do mal de hanseníase”. Todos podem ser encarados como sinônimos, mas estão longe de significar a mesma coisa.
As palavras variam. Assim como uma mesma expressão pode conotar diversos significados, palavras diferentes, mesmo que sinônimos, devem ser vistas sob o ponto de vista de suas diferenças. Pois um uso errado, pode gerar um entendimento completamente distinto daquele que você queria trazer. E como solucionar tal dilema? Bem, neste caso, só existe uma maneira: estudar a língua.
Isso porque uma língua rica como a nossa não é apenas uma herança, mas também um fardo, que exige de nós controle e bom uso, tanto para não corrermos os riscos de sermos interpretados de forma errada, quanto para percebermos as armadilhas nas falas de pessoas, sejam elas ingênuas ou mal intencionadas, que podem nos fazer entender coisas que não condizem com as reais circunstâncias.
Sei que fui extremamente vago e impreciso neste post, contudo, este é um assunto amplo e complexo, que pretendo destrinchar em novos artigos e ensaios a partir das próximas semanas, trazendo novos exemplos e entendimentos onde esse uso das palavras se apresenta como um tema e um problema para qualquer pessoa que use das letras como ofício.

domingo, 14 de agosto de 2011

Realismo


Quantos de nós já não escutamos a seguinte expressão: “essa história mostra a realidade”? E quantos já perceberam que sempre que sempre que esta frase é lançada, está sempre associada à tragédia, desgraça ou degeneração? Coincidência?
É muito comum livros, filmes ou até mesmo músicas, que tratam da violência, das drogas, das perversões e outros malefícios presentes em nossa sociedade serem taxados de realistas e corajosos, pois são eles que mostram a verdade para o apreciador. E outros trabalhos de cunho mais “suave”, como romances-água-com-açúcar ou comédias são tratados como alienantes e falsos.
Pois bem, por incrível que possa parecer, essa reflexão me veio à cabeça depois de uma interessante discussão sobre “Malhação”. Isso mesmo, a novela teen da rede globo. Pois estava eu escutando alguns colegas afirmarem que não conseguem entender como as pessoas acreditam que jovens, em pleno o século XXI, possam se divertir indo a lanchonete local para tomar suco, ou então passarem pela vida escolar sem bebidas alcoólicas ou cigarros. Sem dúvidas, esta novela não mostra a realidade, pois a juventude universitária e de ensino médio não é assim. E foi neste momento que me veio o estalo.
Longe de querer defender a novelinha – que só para constar, não me agrada nem um pouco – devo dizer que eu, aos meus 22 anos, não fumo, não bebo, tenho como hobbies a leitura, o cinema, a saída com amigos para comer, onde tomamos refrigerante e suco, e não curto passar as noites em bares ou boates. Bem, pode não parecer, mas esse tipo de ser humano existe e não sou apenas eu, mas muitos de meu convívio social. E aproveitando para falar de violência urbana, devo dizer que eu, na minha infância, não sofri Bulling – palavra da moda ultimamente – e até hoje – com a graça da natureza - só fui assaltado uma única vez, sem armas de fogo e onde a única coisa que os assaltantes conseguiram me tomar foi uma barra de chocolate. É sério, não estou brincando.
Resolvi dizer isso de forma clara e franca, não querendo levantar a bandeira ou promover um manifesto em favor da caretice, mas sim por vontade de apresentar uma realidade: a minha. Pois o que noto é que realismo e pessimismo são conceitos que normalmente se confundem na cabeça das pessoas, e uma obra de ficção que trate de “conflitos menores”, como amor da adolescência, problemas familiares ou relação de amizade entre um homem e seu cão são vistos como inferiores, ao passo que aqueles que apresentam um quadro caótico, degenerado e destrutivo, são ovacionados pela crítica por sua coragem em descrever a vida como ela realmente é. Nada contra Nelson Rodrigues, mas é importante lembrar que as maneiras de se ver, sentir e entender, isso que insistimos erroneamente em nomear no singular de “realidade”, são plurais. Cada ser humano vai experimentar o mundo de diversas maneiras, passado por momentos bons e ruins que não necessariamente serão sentidos da mesma forma por outras pessoas.
O fato de eu não gostar de bebidas alcoólicas, por exemplo, não significa que o alcoolismo é um mito, como também não quer dizer que eu seja alienado ou algo do tipo, mas sim que a minha maneira de experimentar a realidade é outra de muitos outros que preferem se divertir através de outros caminhos. Assim como o fato de a violência existir, não significa que todo mundo vive com ela ás suas portas, pois podem haver aqueles sortudos que sequer tem idéia dela, que vivem afastados do rebuliço e só escutam falar de assaltos ou assassinatos através das manchetes de jornal.
Nesse sentido, falar de realidade no singular é muito perigoso, pois tudo o que podemos apresentar enquanto artistas – sejamos escritores, poetas, músicos ou atores -, são apenas faces desta grande verdade, que pode ser feia ou bonita, mas ainda assim é só uma parte. Posso assim dizer com grande margem de certeza que livros como “Um amor para recordar”, “Fala sério, mãe” ou “Marley e eu” são trabalhos que a meu ver possuem tanta capacidade de expressar “a vida como ela é” tal quais outros como “Clube dos homens bonitos”, “A elite da tropa”, ou “O Cortiço”. Pois todos eles mostram escopos dessa realidade. Ou melhor, escopos dessas múltiplas realidades que temos a nossa disposição.
Todas as manifestações artísticas mostram de alguma forma a realidade. Seja a do Brasil, seja a da África, seja a das pessoas mais carentes até as mais afortunadas, que não possuem preocupações. Todas as formas de se viver a vida são reais e não podem ser chamadas de ilusórias só porque em algum contexto, existe o oposto. O fato de haver violência não impede um indivíduo de experimentar a paz, assim como o ódio não produz a impossibilidade do amor. Esses conceitos antagônicos convivem no mesmo mundo sem se anularem, logo, não cabe a nós atribuir uma experiência como falsa, apenas porque ela não se apresenta em nossas vidas ou no mundo como um todo.
E até mesmo a fantasia, expressando aquilo que existe apenas em nossa imaginação, é também uma realidade. Uma realidade que pode não se apresentar de forma empírica no cotidiano, mas que ainda assim existe e tem como prova de sua veracidade o fato de usarmos e precisarmos dela para viver nossa existência no mundo.

domingo, 7 de agosto de 2011

O autor, o eu lírico. Vozes mescladas


Quem de nós seria capaz de diferenciar com clareza, aquilo que sai da boca de um personagem, e logo se trata de um discurso de ficção, daquilo que na verdade é um pensamento do próprio autor e diz respeito a veiculação de uma ideia? Lanço esta pergunta pois a partir de que momento podemos dizer que tal pensamento é apenas um elemento constituinte de um enredo, usado única e exclusivamente para dar sentido à história ou à uma personagem em específico, ou quando há as chamadas “entrelinhas”, aquilo que o autor, na verdade, queria dizer a seu público. Uma ideia pessoal, que por não conseguir ser expressada abertamente acaba por usar dos canais da literatura para ser lançada de forma oculta, protegida pelo discurso ficcional.
Não pretendo neste ensaio fazer apologias nem mesmo acusações, e peço desculpas se parecer em algum momento que minha dissertação beira a teoria da conspiração, pois este não é necessariamente meu objetivo. O que me chamou, na realidade, para esse tipo de pensamento foi algo ocorrido já a algum tempo, com relação ao livro de Monteiro Lobato, - “Caçadas de Pedrinho, que compõe a série “Sítio do Pica-Pau Amarelo”. Este, como todos devem saber, foi acusado de possuir conteúdo racista pelo Conselho Nacional de Educação (CNE), devido tanto a algumas comparações feitas entre a personagem Tia Anastácia e um macaco, quanto por comentários maldosos feitos pela boneca de pano Emília acerca da cozinheira do Sítio.
Tal acontecimento gerou grande polêmica na mídia em geral e inúmeros partidos foram tomados, uns alegando ser Lobato um racista, outros não. Deixando as investigações a respeito da vida pessoal do autor de lado, pensemos apenas no “Caçadas de Pedrinho”. De que maneira, através de um livro, seja ele de ficção ou não-ficção, seríamos capazes de encontrar elementos cabíveis para determinar se uma ideia é ou não algo partilhada por um autor? Digamos, por exemplo, que meu personagem de ficção seja um agressor de mulheres: descrevê-lo e construí-lo significa que eu por acaso sou a favor de tal atitude? Afinal, não existem agressores de mulheres no mundo? Omiti-los na escrita seria uma forma de não veicular tal ideia, ou seria apenas censura? Outro exemplo: pretendo eu, como historiador, fazer uma biografia de Adolf Hitler. O fato de escolher tal ícone para meu trabalho significa necessariamente partilhar de suas ideias? Ou este personagem histórico, devido a seu alto grau de malignidade deva ser trancado nos porões de esquecimento da história, para que seus projetos não sejam vislumbrados por mentes fracas e corruptíveis?
Esse não é um assunto simples, pois saber exatamente os limites que marcam a censura do silêncio ético não são claros em nenhum momento. Hoje falamos muito de tolerância e respeito e este é sem dúvidas um horizonte que deve ser buscado. Mas definir até que ponto devem ser caladas ideias que, direta ou indiretamente, agridam tais projetos de futuro é ainda mais complexo.
Seria Monteiro Lobato um racista? Sinceramente não sei dizer. Não apenas lendo as “Caçadas de Pedrinho” pelo menos. Quando penso nesse autor, gosto de me lembra do grande intelectual e militante que ele foi. E uso de minha boa fé para acreditar que tais comentários desrespeitosos nada mais sejam do que a tentativa de traçar um perfil que existe em nosso mundo e construir personagens que são uma realidade em nossa vivência, trazendo veracidade ao romance. E caso os conteúdos racistas sejam de fato propositais e expressem o seu ideal, que pelo menos o bom senso dos leitores saibam vê-los apenas como literatura de deleite e não panfletos que ditem as regras de como devemos pensar.
Todos nós temos autonomia, tanto de expressar nossa ideias quanto a de acatar a dos demais. E é dessa dupla autonomia que nos valemos na tentativa de tornar a igualdade, étnica, religiosa, sexual, entre tantas, uma realidade. A ética que temos de não fazer apologia às coisas erradas é a mesma que aqueles que escutam tem, de não concordar com tais pensamentos. Seria ótimo se a arte fosse um campo da vivência humana autônomo e completamente desvinculado dos demais, onde o único interesse do artista fosse com sua estética. Mas a realidade não é assim.
A arte é criada no mundo humanos por homens de carne e osso, e como tal, vive entrelaçada a todos os dilemas políticos, sociais, econômicos e culturais aos quais a humanidade está submetida. Nesse sentido, o discurso ficcional de Lobato está sujeito aos mesmos jugos que qualquer outro discurso. Eu, particularmente, ainda prefiro pensar na ficção como um campo neutro nesse sentido, pois por mais que alguém mal intencionado venha a querer empurrar seus conceitos errôneos para mim, tenho a total ciência que posso valer de meu poder de decisão para acatar ou repreender tal apologia. E desta forma, deixo a literatura ter a sua voz plena e livre.

terça-feira, 26 de julho de 2011

Despertar: Primeiro Capítulo

:Atenção amigos, pois tenho um recado muito especial para aqueles que curtiram as aventuras por detrás do Véu, vibrando e se envolvendo com as paixões e desafios impostos à Ian e Ana. É que finalmente, depois de muito matutar a respeito da possibilidade da história,  começa a sair do forno "Despertar", o livro que contará da vida do mago atemporal Ian, que conquistou a internet brasileira. Nele, as trajetórias de Kalish, Lucien e outros segredos e conflitos que marcaram o jovem mago durante seu despertar para o mundo mágico estarão revelados. 
Espero que venham a curtir a leitura tanto quanto eu estou curtindo escrever. E  como ainda não está pronto, disponibilizarei aqui no blog uma pequena prévia, com o prólogo e o primeiro capítulo. 
Gostaria que me dissessem o que acharam.
Abraços
Willian Nascimento



Dois meses se passaram desde que tudo começou. Chegou enfim à hora de decidir. A escolha não é difícil, mas executá-la é quase impossível. Apesar de minha pouca idade – pelo menos no que diz respeito à fisiologia – já tenho maturidade moral o suficiente para saber que não deveria ter permanecido ao lado daqueles que amo por tanto tempo. Correndo o risco de cometer uma loucura, de deixar que eles vissem quem realmente eu sou. Pois mesmo quando tudo começou, quando eu ainda pouco sabia o que acontecia comigo, quando estava vulnerável e perdido, ainda assim, naquele momento, podia pressentir que algo estava errado, que nada de bom poderia ter saído de minha insistente empreitada em descobrir a verdade por detrás daquelas lembranças anistiadas.
Tenho de ir embora, contudo, paro para escrever esse relato. Escrevo por que... Bem, talvez com a esperança de que essas linhas sirvam como purgação de toda a rede de acontecimentos que me atacou nesses dois meses. Talvez, quem sabe, escrevendo essas memórias, meu cérebro ache viável apagá-las de seu armazenamento, já que possuo todo um back up no disco rígido de meu computador pessoal. Anotar para esquecer, assim como anotamos o número de telefone que não queremos gravar de cabeça, ou o compromisso que sabemos que não conseguiremos memorizar em tempo. Tudo isso, na vã esperança de poder retornar ao estado de ignorância em que estava e que fiz questão de sair, mesmo contra a vontade de Solange e de Pandora e, de forma inconsciente, de mim mesmo.
Escrevo assim, para esquecer, mas não só por isso. Escrevo para ganhar tempo, para poder aproveitar esses últimos momentos com minha mãe, com meus amigos de bairro. Esses últimos instantes em que poderei fingir ser um garoto normal, como fingi sem sequer perceber que o fazia...
E hora de começar... Se um dia alguém encontrar este arquivo, que se sinta bem vindo a entrar em meu mundo, embora, avise desde já, que pode não gostar.
Meu nome é Ian Gomes, e essa é minha aventura por detrás do Véu...

I – Despertar


Era a primeira vez naquela semana, mas a quinta do mês e talvez a centésima desde que havia completado quatorze anos. O mesmo sonho, na mesma floresta congelada, com o mesmo céu nublado cobrindo todo o horizonte à frente. Eu corria pela neve macia... Ou melhor, eu cavalgava por ela. Meus quatro membros tocavam o chão com uma destreza apenas comparável à dos melhores cães de corrida. E por falar em cães, eis o que vinha atrás de mim. Em meu encalço, lutando para acompanhar meus rápidos movimentos, um lobo branco de belos olhos azuis arfava pesadamente enquanto suas patas atacavam freneticamente o chão na tentativa de acelerar os passos. Estávamos em sintonia naquele momento. Poderíamos até dizer que éramos um. Cúmplices de um momento que era só nosso.
À frente, nosso destino nos aguardava. Cravando as mãos com firmeza no solo, freei bruscamente, parando sentado à beira de um barranco. Meu amigo também parou, respirando de forma forçada, aparentando felicidade em finalmente poder parar de correr. Eu cocei suas orelhas e ele arrastou a cabeça peluda em meu corpo, exigindo um carinho mais digno de uma perseguição tão desleal. Ri bastante enquanto ele lambia meu rosto, me sujando de saliva. Ainda brinquei de fingir que o estrangulava quando nossa disputa para decidir quem era o macho alfa da situação teve de ser interrompida pelo espetáculo que tanto ansiávamos e viemos de tão longe prestigiar.
O céu, até então cinzento e mórbido, agora estava completamente diferente. Nele, uma onda verde esmeralda, que cobriu todas as nuvens, inundou a paisagem, tingindo tudo e inundando o ambiente de vida. Ficamos estupefatos, eu e o lobo, admirando o fenômeno que não sabíamos denominar, apesar de hoje saber que se chama Aurora Boreal.
— Sabe irmão... Vou sentir saudades destes momentos. — disse para meu companheiro, que apesar de nada responder, eu sabia que havia entendido. Seu silencio para comigo não se devia a falta de comunicação, mas sim por entender que o nosso momento chegava a uma situação tensa — Vou sentir saudades de você.
Suspirei profundamente, tentando apaziguar a saudade que previamente sentia, e ele me lambeu no rosto. Desta vez, não tinha a intensidade e a euforia do fim da perseguição. Este era mais sereno, sério, como um beijo de despedida que tenta desejar o melhor para alguém que vai partir, apesar de a separação lhe causar muita tristeza.
— Obrigado.
Nesse momento, fomos novamente interrompidos por mais um show da natureza, que parecia inspirada por aquele momento de cisão. Os flocos de neve, que antes eram pequenos e quase invisíveis, agora caiam de forma mais volumosa, tornando até mesmo visíveis seus cristais de gelo a olho nu. Senti-os atingir meu corpo, queimando-o levemente de tão gelados. Essa era a minha deixa. Não do ambiente, mas de meu próprio sonho. Pois como sempre acontecia este ponto em que eu acordava, transformando a floresta, o lobo, a neve, tudo, de volta em meu quarto no Rio de Janeiro. Num país quente, úmido e tropical. Totalmente o inverso de minha floresta encantada.
Mas este despertar me aguardou uma pequena surpresa, que começou com mudanças gradativas na transição entre sonho e mundo real. Se nas experiências anteriores eu apenas começava a ver tudo de forma embaçada conforme as imagens eram substituídas com a abertura dos olhos, neste, a primeira diferença que senti foi como a intensidade com que eu era atingido pela neve aumentou de força, de suave e fofa, passando a ser mais grossa e intensa. Gotas pesadas agrediam meu corpo. O chão macio agora se tornava duro, muito diferente de meu aconchegante leito. Mas uma coisa permanecia: o frio.
Abri os olhos, para logo depois querer fechá-los novamente devido a claridade potente do poste de luz que se colocava acima de mim. Ergui-me bruscamente, pondo-me de pé num susto. Eu estava molhado, estava com frio, estava só. Mas o pior de tudo: não estava onde devia estar. Olhei em volta e fiquei feliz em reconhecer onde me encontrava. Todavia, esse estupor de contentamento não pôde durar muito, pois eu não fazia ideia de como havia parado lá. Os bancos, os brinquedos, o coreto. Eu me encontrava na praça próxima a minha casa, a umas cinco quadras de minha rua. Mas como havia chegado lá? Olhei-me e percebi que ainda vestia apenas a bermuda com a qual fui dormir naquela noite, deixando assim boa parte de meu corpo exposta a agressão da forte chuva que caía implacavelmente. Estava nervoso, com um pouco de medo, mas acima de tudo, completamente perdido.
Estava cheio de perguntas, só não havia ninguém à minha volta. Então, qualquer resposta que quisesse, não encontraria ali. Era hora de ir para casa. Não queria perder tempo, então corri com os pés descalços pelo asfalto molhado, sem sequer olhar em volta e dar a chance de me envergonhar por estar correndo sozinho e seminu por uma rua deserta de uma madrugada chuvosa. Rapidamente cheguei em casa, sem estar sequer cansado do tamanho exercício. Tentei abrir meu portão e me deparei com ele trancado. Praguejei alto, vendo que teria de pular o muro para entrar. Aproveitando-me da euforia, trepei nas paredes sem pestanejar, e com certa facilidade cheguei ao outro lado. Ao fazer isso, quase caí em cima de Xena, minha cadela que, provavelmente, ouvindo meus passos de longe, pôs-se a me esperar próxima do muro, mesmo que isso significasse tomar um belo banho de água gelada.
Antes mesmo que ela pudesse latir de contentamento, eu pus a mão em seu focinho, ordenando que se calasse. Sem precisar repetir o comando, ela me obedeceu. Às vezes eu ainda era capaz de me surpreender como aquela labradora de cinquenta quilos, traquinas e completamente hiperativa era capaz de me obedecer tão facilmente, enquanto meus pais sofriam para fazê-la simplesmente parar de pular em cima deles atrás de carinhos e brincadeiras. Sem pensar mais nisso, pedi que ela entrasse, e foi o que ela fez, abrigando-se dentro de sua casa de cachorro que ficava protegida debaixo da telha do quintal dos fundos.
Muito bem, minha cachorra já se encontrava devidamente abrigada, agora faltava apenas um elemento: eu. Como suspeitei, a casa estava trancada. Curioso, olhei em torno atrás do local por onde eu poderia ter saído. Vendo aberta apenas a janela de meu quarto que ficava no segundo andar, descartei a possibilidade de um salto mortal, embora pudesse jurar por todas as coisas sagradas que havia trancado bem aquela janela antes de dormir.
Dei uma volta pela minha residência, procurando uma forma de entrar em casa sem que isso significasse acordar meus pais, que provavelmente perguntariam o que seu único filho, aparentemente saudável no físico e na mente, fazia no meio da chuva vestindo apenas um short. Por sorte, encontrei uma janela dos fundos trancada de forma desleixada. Com um pouco de força e boa vontade do destino, consegui forçá-la a se abrir e me deixar entrar na área de serviço. Lá dentro, tirei o short para evitar molhar toda a casa e me sequei com uma toalha que se encontrava no secador de roupas.
Rapidamente, tratei de percorrer o caminho que me levaria a meu quarto, tomando todo o cuidado para não fazer barulho. Entrei e fechei a porta, podendo finalmente respirar de forma adequada. Sentei no chão, cansado. Mas também quem dera. Havia sido um grande esforço o que eu havia empregado naqueles poucos minutos. Uma corrida pela rua molhada, um salto bem sucedido pelo muro de dois metros que cercava minha casa, e uma prova de força ao abrir a janela semi emperrada que me permitiu adentrar o recinto. De fato eu estava em uma excelente forma. Talvez as doses extras de comida que eu estava ingerindo estivessem ajudando. Afinal, meu apetite nunca antes esteve tão atenuado quanto naquelas últimas semanas.
Recuperando-me da adrenalina, me ergui do chão e fui até a janela. Olhando para a rua, consegui me imaginar nitidamente pulando pela janela e aterrissando no meio do asfalto. Por alguns segundos, eu cheguei a pensar que aquilo era possível, pouco antes de rir da estupidez de meu pensamento. Fechei novamente a janela para parar de pensar em besteiras e fui vestir roupas secas. No fim, deitei-me na cama mesmo não acreditando ser capaz de dormir devido a tentas perguntas que assaltavam a mente. Mas o sono chegou.
Ao olhar para o relógio ao lado, vi que eram quatro da madrugada. Amanhã acordaria cedo, para a última aula antes das férias de meio de ano. Dentro de uma semana seria meu aniversário, quando completaria quatorze anos, mas confesso que não aguardava a data de forma muito ansiosa. Minha mãe provavelmente me obrigaria a fazer uma comemoração e eu aceitaria sabendo que não adiantaria nada contrariar. Enfim, seria mais um dia comum em casa. Pelo menos era isso que eu esperava e eu não podia estar mais enganado.
Antes de cair nos braços de Morfeu, passei a mão no rosto, ainda conseguindo sentir o toque da língua do lobo. Era muito estranho. O mesmo sonho, de forma tão repetitiva. No começo, era confuso e passava em minha cabeça de forma fragmentada. Agora, porém, se mostrava tão nítida, que me dava a real impressão que estava de fato vivento aquelas situações. E mais preocupantes que eles só mesmo os ataques de sonambulismo, que começaram há duas semanas. Primeiro eu acordara em meu quarto, deitado ao lado da cama, ou na minha suíte, dentro da banheira. Depois, passei a andar pela casa e acordar deitado no sofá, ou no chão da cozinha. Mas naquela noite, eu não só havia saído de minha residência como havia caminhado pelas ruas da Vila da Penha por cerca de vinte minutos. Isso, é claro, contando que eu tenha feito um caminho único em passos moderados.
Sem dúvidas aquilo tudo era muito estranho. Todavia, eu sabia que não encontraria as respostas aquela noite, naquele quarto e em tais condições. O amanhã seria um novo dia e eu poderia pensar melhor no assunto. Bocejei. Os olhos foram pesando e eu nada mais senti, quando o mesmo sonho se repediu, da mesma forma, com a mesma nitidez. Ainda bem que, para variar um pouco, eu havia despertado em minha cama na manhã seguinte.