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domingo, 18 de dezembro de 2011

Leitura e Reflexão 2: A loja dos suicidas, de Jean Teulé

Sei que já falei deste livro, mas confesso que fiquei inconfromado com meu pouco rendimento no artigo anterior. Pois um livro que me causou tanta alegria, não poderia ficar retido naquele pequeno texto que, confesso, saiu confuso apesar de verdadeiro.
Então, ofereço aqui uma segunda leitura e reflexão deste maravilhoso trabalho de Jean Teulé, um autor que acabo de conhecer, mas que sem dúvidas vai para o hall dos melhores autores que já tocaram minha imaginação.
Aviso àqueles que não leram que este texto possui spoillers que poderão estragar a surpresa de futuros interessados. Neste sentido, sugiro que o leiam apenas depois de terem acesso à obra, que vale muito a pena.
Quando descobri que no Distrito Federal haviam encenado uma peça com base no livro, pensei: "por que esses caras não vieram ainda para cá?"

Aproveitem a leitura e voltem sempre.


A família Touvache vive cada dia de sua vida dedicando-se a sua loja incomum. Nela, artigos voltados ao público suicida são fornecidos, desde cordas para se enforcar, até venenos dos mais variados tipos, para aqueles que buscam uma morte lenta e pacífica, digna dos mais belos dramas. Condizentes com os produtos que fornecem, os lojistas trazem consigo uma visão de mundo fria, distante e pessimista. O planeta é um lugar condenado, a vida é uma eterna tragédia sem sentido, logo, seguir o caminho da aceleração da morte não é uma covardia, nem mesmo um pecado, mas sim uma forma honesta de encarar a realidade das coisas. Apesar dessa filosofia, os Toucache, diferentes de seus clientes, são concebem o suicídio para suas vidas. Para a matriarca da família, eles possuem uma missão: a de ajudar aqueles desgostosos com a existência a encontrarem um final rápido e eficiente. Sem os Touvache, essas pobres almas jamais encontrariam o fim que desejam e por este motivo que, apesar de muito quererem, estes não podem cometer suicídio. Pois se eles morrerem, quem tomará conta da loja?

Divergindo totalmente desta maneira de estar no mundo, o jovem Alan, caçula dos Touvache, é a ovelha negra (ou branca) da família. Tudo para ele é motivo de alegria: se assiste a uma tragédia, onde milhares de pessoas morrem, ele prefere dar sua atenção àqueles que foram capazes de sobreviver; se os clientes da estranha loja já desistiram da vida, ele busca encontrar para tantos um novo motivo para existir; e se sua família prefere permanecer estagnada na morbidez de seus ideais que já atravessaram gerações, ele luta para a criação de novos potenciais para seus membros e para o estabelecimento que eles tomam conta. É claro que não preciso dizer que tal forma de pensar não agrada nem um pouco a sua família. Mas com o desenrolar a história, percebemos que a visão cor de rosa do mundo de Alan, além de irritante, é também assustadoramente contagiante.

Todavia, algo surpreende acontece ao se chegar ao fim do livro. Pois de todos os familiares, cada um com um potencial maior de entrar para a lista dos suicídios anuais do Estado, é Alan aquele quem toma cabo da própria vida. Inebriado pelo belo trabalho que realizou, trazendo alegria e esperança para a sua família, e vendo em sua obra o sentido de sua existência ser realizado, ele resolve enfim, que chegou o final de sua história...



O suicídio é um dos maiores tabus de nossa sociedade. Um problema que nada mais é do que a ramificação de outro ainda maior, que exigiu do ocidente vários esforços de compreensão: a razão da morte. A filosofia, a teologia, a arte, a psicologia, o mito, não são poucos os investimentos para se explicar essas que são questões existenciais poderosas: “qual o sentido da vida?”; “por que morremos?”; “para onde vamos?”; “existe lugar para ir?”. Tudo o que sabemos é que um dia iremos morrer. E com base nesta máxima, construímos nossas existências de forma que elas tenham algum sentido para nós, seja nos filiando a religiões, partidos, filosofias de vida ou outra forma que torne o nosso estar no mundo algo um pouco mais seguro, e onde não nos concebamos apenas como meros acidentes da natureza, sem razão para sermos e sem objetivos para estarmos.

Desta forma, se a morte nos parece como um inevitável fim, que exige de nós um esforço para fazer a vida valer a pena, não é a toa que o suicídio acaba por ser encarado como algo pecaminoso, fruto da ação de covardes ou de pessoas que não possuem a força necessária para encarar a existência. Logicamente que esta não é uma visão homogênea, pois o movimento ultraromântico, por exemplo, concebia o suicídio como uma prova de coragem. Pois a partir do momento em que a existência não tinha sentido, livrar-se da vida, escapando de um mundo corrompido e vicioso, era a forma de ascender à verdadeira forma de existir. O mundo puro dos espíritos. Contudo, o que acho de mais valoroso em “A loja do suicidas” é uma nova visão deste ato que é tão praticado, mas tão pouco entendido.

Longe das visões pessimistas que alimentam as duas vertentes acima mencionadas – tanto aquela que concebe o suicídio como um ato pecaminoso ou covarde, como a romântica que entende o suicídio como algo necessário em um mundo degenerado como o nosso – o livro de Toule nos faz pensar de uma forma totalmente nova sobre esta questão...

Quantas pessoas será que já puderam ter a alegria de, em seu leito de morte, olhar para trás e pensar: “valeu a pena”, “consegui tudo o que eu quis”, “posso ir em paz”. Eu não possuo instrumentos capazes de dar uma resposta precisa, mas tendo a entender que esta não seja uma alegria de todos. Fazer a vida valer a pena. Esta é a tópica de quase todos os discursos motivacionais, dos livros de auto ajuda e dos filmes alegres que se alastram em nossos cinemas. Esse é o objetivo principal, mas não possuímos uma fórmula clara e precisa, que nos garanta cem por cento de eficácia para atingir essa meta. Acaba que, ao fim e ao cabo, fazer a vida ter sentido passa a ser uma experiência pessoal, uma mistura de talento próprio com a sorte e o revés do acaso. Uma habilidade que não se aprende na escola, nem em livros ou em blogs.

Então, partindo deste pressuposto, como interpretar o suicídio de Alan? Ele, um personagem otimista, alegre, que havia conseguido aquilo pelo que tanto lutou: trazer esperança para sua família sombria. Alan havia conquistado seu objetivo, havia vencido apesar de todas as adversidades. Era um vitorioso, e se ele morresse naquele momento, sem dúvidas seria capaz de olhar para trás e dizer: “valeu a pena”, “consegui tudo o que eu quis”, “posso ir em paz”. E foi exatamente isto que ele fez...

Viver após isso, para Alan, seria entrar mais uma vez no jogo da vida. Ter de encarar essa realidade que nos é tão caótica, na medida em que, por mais que queiramos e nos preparemos, não somos capazes de controlar tudo o que nos acontece. Isso, em certa medida, pode ser assustador, mas sem dúvidas dá à vida aquilo que ela tem de mais interessante: sua maleabilidade. A capacidade de fazermos dela aquilo que queremos dadas, é claro, as possibilidades que nos aparecem. Alan já havia vencido, já havia conquistado tudo o que desejava. Então, viver para ele também significava algo sinistro. Significava poder perder tudo aquilo que havia conquistado. Não apenas pela possibilidade de sua família voltar ao estado mórbido em que antes se encontrava, mas também porque ele mesmo, a partir daí, poderia preso em uma rotina, sem a capacidade de criar outro grande objetivo que valide seu estar no mundo.

Podemos dizer que Alan foi um covarde, que desperdiçou sua vida logo quando tinha tudo pela frente. Ou então dizer que ele foi corajoso, na medida em que saiu pela tangente de um mundo que, a partir dali, não poderia ter mais nada a servir para ele. Eu, pelo contrário, gosto de pensar que Alan, como todos nós, fez algo simples e corriqueiro para todos nós: uma escolha. A escolha entre viver ou morrer. A partir do momento em que havia chegado ao fim de seu projeto de vida, ele teve a oportunidade de decidir se encerraria ali e sairia por cima, ou criaria ele mesmo um nodo projeto e a partir do momento em que o iniciasse, estaria mais uma vez no eterno jogo da vida, usando e abusando da sorte e lutando contra o revés, relacionando-se com as pessoas mais interessantes e tolerando aqueles cuja presença o incomodassem, ser feliz e triste ao mesmo tempo. E, é claro, abrindo mais uma vez a oportunidade para saber se, ao fim, irá vencer ou fracassar.

sábado, 10 de dezembro de 2011

Entre o riso e o sério

Normalmente, quando queremos atribuir o caráter de verdade ou de importância àquilo que fazemos, costumamos dizer que tal coisa é séria. E se algo não nos parece correta ou digna de atenção, perguntamos: “por acaso isso é brincadeira?” Em algum momento da história, o ocidente pareceu atribuir ao sério um caráter de importância, de algo que tem seu valor, que é digno de nota e que deve reger as atividades nobres da vida. Em contrapartida, o riso, o cômico, é apresentado como o campo da brincadeira, da leviandade e das coisas sem importância. O riso faz parte do universo popular, com suas festas, pulsões e subjetividades, enquanto o sério está no campo do trabalho, do pensamento e da racionalidade.


O livro de Umberto Eco, “O nome da rosa”, nos aparece como um bom exemplo desta tendência. Para aqueles que leram, ou ao menos assistiram ao filme, nota-se bem claramente ao final como o problema da comédia fazia parte da reflexão teórica dos pensadores da idade média. O riso, atribuído ao diabo, representa aquilo que um homem culto jamais deve fazer. Pois, de acordo com alguns teólogos da época, como Jesus nunca emitiu uma gargalhada e estas ao longo dos evangelhos só foram pronunciadas por aqueles que debocharam do Cristo na cruz, duvidando de sua santidade, logo o cômico nada mais é do que uma criação do Diabo. Uma maneira de afastá-los do caminho de Deus. Desta maneira, o fato de Aristóteles, um filosofo altamente respeitado na baixa idade média, ter escrito um tratado em que concebe a comédia como uma manifestação artística digna de reflexão filosófica, é alvo de preocupação. Pois ao homem erudito, segundo alguns, não deve ser permitido rir. Pois este o apresenta à descrença e trabalha com a mentira, a falsidade.

Tal pensamento pode parecer exagerado, mas se pensarmos o papel da comédia em nossos dias, seja no uso de termos como os expressados no início do ensaio, seja em alguns tratos que damos a ela, percebemos como esse entendimento ainda se mantém em nossa sociedade. Em nome do riso, basicamente se pode tudo. Uma ofensa não é ofensa se for piada. Uma palavra de mau gosto é aceita se vier revestida de brincadeira. Em nome do humor, basicamente podemos dizer que uma mulher feia deve agradecer ao ser estuprada. Acho que alguns devem saber do que estou falando.

O campo do riso esconde sim um pouco de descrença. Já falei isso em outro artigo – “Ceticismo e comédia” – pois um ser humano não é capaz de rir daquilo que ele considera importante ou verdadeiro. Contudo, o efeito do riso deve sim ser encarado como algo sério. Através da comédia, podem-se produzir coisas importantes. Pode se produzir uma mensagem crítica, uma mobilização social. Contudo, também se é possível manifestar comentários dos mais destrutivos e ofensivos.

Se á uma coisa que a personagem Coringa me ensinou, foi que o riso tem sim algo de muito sério. Sério em vários sentidos. Tanto por ter um lado obscuro e sinistro, como o do antagonista de Batman, mas também pode ser um grande produtor de conhecimento. Uma maneira de produzir um discurso intelectual que toda a pompa e todas as regras do discurso sério e científico são incapazes de fazer. A liberdade dada ao humor, assim como todas as liberdades aos quais nos oferecemos tem seus usos e seus abusos, suas potencialidades e seus limites, e desta maneira encarna o exemplo de uma faca, que nas mãos de um médico é capaz de salvar vidas enquanto que utilizadas por um assassino podem causar estragos no corpo e na alma de suas vítimas.

Neste sentido, proponho com este artigo/ensaio que façamos um manifesto em favor do riso. Um movimento intelectual que faça as pessoas olhares o humor sim como algo sério, tanto em suas capacidades quanto em suas implicações para a vida em comunidade.