Uma das coisas que sempre escutei, mas que sinceramente nunca entendi
até me lançar no mundo da escrita, foi a célebre frase que se coloca ao título
deste ensaio. Sempre a considerei uma figura de linguagem, ou apenas floreio
retórico, daqueles que usamos para tornar mais nobre uma atividade ou um
processo qualquer. Contudo, tenho que dizer que por mais estranho, ou
simplesmente exagerado que possa parecer, isto de fato acontece, quase
literalmente falando. Aconteceu a primeira vez quando escrevi “O Véu”. Foi
realmente mágico, quase inexplicável.
Depois de preparar meu roteiro e já ter ao horizonte quase todo o enredo
em que minha série se embrenharia, comecei a escrever. Primeiro, iniciou-se com
pequenos desvios, uma frase que não imaginei antes, um contexto que não havia
pensado e até mesmo personagens que não estavam previstos. Cada um deles, em
princípio, me deixava nervoso, pois parecia que a qualquer momento todo o meu
plano ruiria e eu acabaria me encontrando em um beco sem saída cuja a única
solução seria começar novamente.
Mas por sorte não foi isso o que aconteceu. E neste momento entendia
que, apesar de perder em precisão e controle, meu romance ganhava muito mais em
termos de vivacidade. As palavras estavam praticamente se escrevendo sozinhas,
como se fossem psicografadas, para usar um termo mediúnico. E neste processo,
início, meio e fim se entrelaçavam em uma dança impulsiva, quase cósmica. Em
determinados momentos, uma ação passada sem a menor importância me chamava à
atenção, relendo-a, imaginava um novo contexto, uma nova possibilidade e de um
trecho que estava ali para “encher linguiça”, uma nova trama se abria.
Lembro que já tive essa experiência quando narrava as aventuras de RPG
para meus amigos. Logicamente que neste caso esse processo é encarado de forma
natural, visto que eu, como narrador, não tenho o real controle sobre os
personagens – cada um manipulado por um jogador – como teria com os de meu
livro. Mas ainda assim, tal constatação não tornava o processo menos mágico.
Ainda me lembro como se fosse hoje. Eu perdia horas do meu dia preparando uma
trama, criando desafios e condições que se abririam para meus amigos, tentando
lapidar a história para que os jogadores trilhassem, sem perceber, pelo caminho
que eu havia traçado.
E ao fim, o que acontecia? Eles simplesmente estragavam tudo (risos).
Por mais que eu tentasse empurrá-los para uma direção, sempre tinha um que
procurava outro caminho. Não importava o quão óbvio eu tentasse deixar uma
conclusão, eles sempre pensavam numa nova possibilidade. E o pior: algumas
vezes essas invenções acabavam se revelando melhores do que aquela que eu havia
primeiramente formulado. E nesses momentos, com um pouco de decepção e inveja,
eu, com minha tremenda cara de pau, simplesmente reconfigurava a minha
história, fazendo parecer que a ideia brilhante que o jogador havia tido no
meio da aventura fosse, na verdade, minha, e que sempre esteve ali, mas só ele
havia tido a perspicácia para desvendar.
E nestes momentos, a história de escrevia sozinha, através da relação
entre narrador e jogadores, e seus embates. E não importava meu roteiro, meu
preparo ou meu desejo de manter a história linear, eu sempre tinha, em algum
momento, que lhe configurar novamente. Seja para corrigir uma burrada, seja
para plagiar as ideias de outro. Como
disse, nada mais natural, já que temos neste tipo de história a múltipla autoria.
Todavia, isto não desmerece o valor da experiência. Isso porque, na escrita,
tal fenômeno também ocorre.
Nenhum autor é uma ilha, isso já deve ser óbvio para todos. Todo o
grande escritor já foi um grande leitor, um espectador que em determinado
momento resolve subir ao palco e ter o controle das ações daquele personagem
que até então só pôde contemplar. Nesse sentido, o autor é alguém que está em
eterno diálogo com o mundo, seja com seus pares e com aqueles que o
antecederam, seja com a sociedade em geral, pelas experiências diretas ou
indiretas. E no processo de escrita, o que fatalmente ocorre são novas ideias surgirem
no meio do caminho. Às vezes porque lemos alguma coisa, ouvimos algo, ou simplesmente
por conta de uma ideia que demorou a pipocar em nossas mentes.
E neste momento, quando uma ideia nova surge em meio a uma história em
andamento, passamos a olhar nosso próprio trabalho como incompleto. E frustrados
ficaríamos, se a imaginação não desse conta de se reinventar. Se não fosse a
mirabolante engenhoca que é a capacidade de fantasiar, nenhum trabalho ficaria
concluído. Pois por mais que nos preparemos, por mais rigoroso que seja o nosso
método, não conseguimos – e sequer devemos – nos livrar desses momentos de
profunda perdição, em que, sem saber ou entender, estamos dialogando com nosso
projeto, com o mundo e com a energia criativa que pulsa em nossas mentes.
Talvez os gregos estivessem certos ao fim, e no céu existam musas que
inspirem aqueles que se aventuram pelas artes. É uma ideia fantástica, mas, sem
dúvida alguma, verdadeira. Se você já criou algo antes deve saber o que estou
dizendo. Naqueles momentos em que seu
planejamento não da conta, em que você começa a abrir tantas arestas que não
consegue imaginar como tudo ficará no final, ou simplesmente quando chega a um
ponto em que parece que a coisa não andará mais. E depois, tudo se resolve,
como mágica. É, sem dúvidas uma experiência única e maravilhosa.
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