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domingo, 31 de maio de 2015

Conto: O obituarista



O estalo do vidro se despedaçando, mais uma garrafa arremessada contra a parede. Quantas ao todo? Cinco seis... Não importava.  Tudo o que delas restava agora se encontra misturado. Nas manchas da parede que antes eram aguardente, os cacos, os restos mortais dos recipientes de vidro... Tudo unido... Todos em um... Como eram ele e Viviane.
Provavelmente se ela ainda estivesse ali, estaria lhe dando uma bela bronca, por sujar a casa que ela tanto prezava limpa. Sua voz fina que quando gritava doía os tímpanos... Seus sermões que pareciam dirigidos a uma criança... Sua mania de ficar de mal com ele mesmo pelos pequenos deslizes. Como sentia falta de tudo aquilo.
Mesmo em seus momentos de discussão, Viviane era uma companhia melhor que o silêncio, melhor que o álcool, melhor que a solidão. Naquele apartamento vazio na Glória, com uma máquina de escrever empoeirada, esquecida pelo tempo. Em um quarto escuro, sujo, onde o ar devia estar trancado há dias, semanas, talvez meses. Quanto tempo desde a última vez em que abriu as janelas para deixar o ar circular, ou a luz do sol aquecer o cômodo?
Não conseguia se lembrar. Há muito que mal sabia diferenciar os dias das noites. Muito menos ter a noção da passagem do tempo. Para ele, uma única data importava. Todo o tempo se resumia aquele dia. Pois depois dele, os segundos não mais caminharam, e Cronos parou de correr.

Levantou-se para pegar outra bebida, caminhou vagarosamente até a cozinha, abrindo o armário para pegar a última garrafa. Senti-la em seus dedos causou mais desconforto do que alivio à sede que lhe queimava a garganta. Sabia que em breve teria de ir a rua comprar mais, encontrar um ou dois conhecidos. Alguns ainda com a audácia de perguntar como estava. Ou simplesmente condoídos de sua piedade a ponto de apenas olharem para ele como o animal ferido que era.
Arrancando a rolha com os dentes, caminhou até seu quarto para poder deitar e beber sua última garrafa em paz. Mas não teria o sossego que almejava aquela tarde, pois mais uma de suas habituais companhias estava lá. Quem era. Não importava. Se era amigo ou inimigo, se conhecia ou não. Ou ao menos se era real ou fruto de sua bebedeira.
Um homem, branco, magro, vestido com as mesmas roupas pretas de sempre que, combinadas com seus cabelos curtos e negros, e a pele leitosa, configuravam-lhe uma atmosfera sepulcral. Sentado em sua cadeira em frente à escrivaninha, ele olhava atendo a página presa à velha máquina de escrever.
— “Quinze de novembro e 1996” — leu de forma vazia, como se não tivesse prestando atenção ao que narrava. — Realmente esta máquina já foi usada para narrar acontecimentos mais emocionantes.
“Aurélio Américo Meirelles, 83 anos. Profissão: agricultor. Filiação: José Pereira Meirelles e Vitória Américo. Sepultamento às 10 h, em local a definir, saindo de Igreja do Carmo, as 09h.
Ana Paula Carneiro da Silva, 36 anos. Profissão: do lar...”
— É uma boa forma de ganhar dinheiro, dado os tempos como estão, onde muitos estão morrendo — explicou o bêbado, sem muita importância.
— Realmente muitas profissões encontraram um aumento em sua produtividade, dados os dias escuros em que vivemos. A minha é uma delas. Mas a sua antiga de jornalista também seria muito útil na atual conjuntura, tanto ou mais quanto esta nova de obituarista.
O homem com a garrafa se deita na cama, ignorando o último comentário de seu interlocutor, que continua independente de platéia.
— Você ainda se lembra de quando decidiu mudar de coluna no jornal? — silêncio — Imagino que sim. Qual foi mesmo a data? Vamos ver... Ah sim... Vinte e um de Janeiro do corrente ano. Foi quando escreveu seu primeiro obituário, não é mesmo?
O silêncio era tamanho no aposento que era até mesmo possível ouvir o ranger dos dentes do jornalista, algo que pouco ou nada incomodou nosso misterioso narrador.
— Foi realmente maldade com você pedirem para escrever aquele texto. Mas quem melhor que você, para homenagear a heroína de seu país...
— Viviane não foi uma heroína! — Mesmo sem olhar para o homem a quem se dirigia, o tom de voz de nosso amigo alcoolizado era suficiente para espantar qualquer ser vivo em um quarteirão. Todavia, o senhor de preto é imune a qualquer tipo de ameaça. — Ela foi apenas uma descuidada, uma idiota. Que estava no lugar errado, na hora errada.
— Ah, foi sim. Uma fatalidade, sem dúvidas. Realmente a jovem Viviane não era das mulheres mais virtuosas que já caminharam por este maldito mundo... De fato não era.
— Limpe sua boca ao falar dela! — desta vez a ameaça sonora não foi o suficiente. Foi necessário também ao nosso desafortunado amigo se erguer e agarrar o irritante companheiro pelo colarinho, de modo que seus olhos quase colidissem um com o outro. — Maldito! — cuspiu.
Algo semelhante a um sorriso traçou o rosto do desconhecido. Embora seus olhos demonstrassem uma constante e inalcançável tristeza, poderíamos jurar que este se divertia com a situação.
— Vejo que a chama que reuniu aquele jovem casal da foto ainda queima dentro de você...
Quase que instintivamente, o obituarista olha para a direção da máquina de escrever, onde ao seu lado, repousa um velho porta retratos tão empoeirado quanto a casa que o cerca.  Na fotografia que ele guarda, um jovem e belo casal sorri para quem lhe assiste. Uma mulher negra, cabelos alisados, sorriso espontâneo e sincero. Ao lado, uma versão menos maltrapilha de nosso colega jornalista. A foto de um tempo em que ele ainda se preocupava em fazer a barba, ou cortar o cabelo. De um tempo em que a insônia não transformara seu rosto em uma erupção de bolsas.
Para qualquer um que olhasse o belo homem de foto e o comparasse a sua versão atual, imaginaria um buraco temporal de pelo menos uns vinte anos que os separassem. Todavia, não havia mais de dois anos que diferenciassem nosso jornalista do homem da foto. Os cabelos e os olhos continuavam castanhos, mas os primeiros estavam maltratados e os segundos tristes. A pele ainda era branca, mas a primeira era suavemente bronzeada e a atual completamente entregue a falta de exposição aos raios ultravioleta.
— Deve ser por isso que a presença dela não sai deste quarto — o homem de preto se liberta das mãos do obituarista sem fazer muito esforço, caminha até a janela e puxa as cortinas com um movimento rápido e preciso. — Vamos ver se um pouco de luz espanta esse espectro daqui.
A luz solar ofuscante inunda o quarto, queimando os olhos do jornalista no instante em que entra em contato com eles. Irritado, ele corre até a janela para fechá-la novamente, mas é impedido com a imagem que se forma a sua frente.
Talvez fosse o efeito do álcool, ou simplesmente a apatia a qual entregou sua própria vida faz algum tempo, mas a imagem aterradora a sua frente não causou maior reação em seu espírito do que uma leve confusão ao não reconhecer o lugar em que estava.
Seu apartamento possuía uma vista privilegiada para o Aterro do Flamengo, onde al julgar pelo dia que brilhava lá fora, haveria um grande fluxo de corredores, ciclistas ou simples transeuntes que, sozinhos ou acompanhados, levando bolsas ou animais de estimação, estariam transitando pela orla.
— Onde estão todos? — foi tudo o que conseguiu perguntar, com sua voz quase desaparecida dentro de sua garganta.
— Todos... — o interlocutor pensou um pouco antes de morrer — Já os levei.
— C... Como? — balbuciou.
A rua deserta e suja a sua frente, o cheiro de morte. Nenhum som, nem a poluição dos carros, nem mesmo as conversas misturadas das ruas. Onde estavam todos? Ao longe, apoiada na calcada, o obituarista pode reconhecer algo parecido com uma menina em um vestido florido deitada no meio fio. Mas bastou um olhar atento para perceber que não se tratava de uma criança. Ou pelo menos, não uma criança completa, pois ali restavam apenas seus ossos em decomposição.
— Parece que a guerra pelos recursos naturais chegou a um nível absurdo — explicou calmamente o homem de preto. — A guerra civil no Brasil, entre esses tais nacionalistas exacerbados e os vendidos ao capitalismo estrangeiro alçou inúmeros comentários maldosos nos demais países. Já que o Brasil, detentor da maior riqueza natural do planeta, parecia disposto a destruir toda a sua glória lutando entre si num conflito até então pouco explicado.
— Setembro de 1995 — interveio o jornalista, ainda sem conseguir tirar os olhos da catástrofe que era vista nos prédios destruídos, em carros pegando fogo, no mundo que, do dia para a noite, parecia ter virado de ponta cabeça. — A ONU declarou a Amazônia como Patrimônio da Humanidade.
— E definiu como dever de protegê-la todos os países do mundo — o homem de preto solta uma risada seca — realmente, essa colocação é passível de muitas interpretações com relação as reais boas intenções da Organização...
— Grupos se revoltaram no Brasil, manifestações, repressão, guerra civil...
— Sim. Hobbes deve estar rindo no inferno. Os brasileiros se tornaram animais. Lutando uns contra os outros de forma tão violenta até que o ideal por trás de tudo aquilo se perdesse em sangue e lágrimas.
— Não lutávamos contra nós mesmos — o jornalista começava a recuperar a voz enquanto via uma figura moribunda caminhar pela Avenida Infante Dom Henrique. Tratava-se da versão magérrima e maltrapilha de um cão. O animal caminhou até o cadáver da menina, cheirando-o atrás de um pouco de carne que aqueles ossos pudessem ainda guardar. Quando percebeu que nada encontraria, deitou-se ao lado do cadáver para ali descansar em paz. — Lutávamos contra o governo que queria entregar nosso país.
— Não era isso que Viviane pensava, não era mesmo?
Um rosnado brotou no peito do obituarista, mas ele segurou o impulso de espancar o rosto do homem de preto.
— Viviane acreditava que o Brasil conseguiria reverter à situação em juízo. Que bastava esperarmos. Ela era passiva, infantil, inconsciente.
— E você era racional, ativo... Com garra, foi às ruas lutar. Ela pediu que você não fosse. Que ficasse em casa em segurança.
— Mas eu ignorei seus pedidos.
— Sim, e ela o abandonou. Foi para a casa da mãe, onde a Guerra Civil a alcançou.
— Ela morreu...
— Sim — o homem de preto encarou o vazio da rua, que parecia refletir o vácuo em sua alma. — E logo depois a cidade do Rio de Janeiro também.
— O que aconteceu?
— A Guerra Civil continuou. Os ânimos afloraram, pessoas morreram. Até que a intervenção externa foi necessária.
— Atacaram-nos.
— Sim... Uma bomba de nêutrons. Mais poderosa que a que atingiu Hiroshima, disparada contra o interior do Estado. Evitaram atingir a cidade antes Capital da República como forma de preservar o que até então era considerada uma das grandes cidades do globo. Mas o estrago não tardaria a chegar.
“Radiação trouxe doenças, que gerou o isolamento da cidade, que aumentou a fome, que trouxe mais doenças. Eu chegar e arrebatar toda a população foi apenas questão de tempo... Em poucas semanas, a cidade fora reduzida a essas cinzas que agora se encontram a sua frente”.
Algo não fazia sentido. O obituarista sabia disso. Alguma não se encaixava.  A História estava incompleta... Havia um detalhe que o homem de preto não estava contando.
— Está errado.
— O que disse?
— Está errado. Não foi isso o que aconteceu.
— Então como foi que aconteceu — pela primeira vez o homem de preto demonstrava algum tipo de interesse pela conversa.
— Viviane, não foi para casa dos pais. Ela... Ela foi atrás de mim.
A memória voltava a cada segundo. Aos poucos, aquela realidade criada pela estranha criatura desvanecia e a verdade se configurava na mente do obituarista.
— Estava realmente uma confusão na Candelária àquela tarde — concordou o homem. — Ela devia gostar muito de você para ter se embrenhado naquela balburdia enquanto você brincava de revolucionário.
— As coisas haviam perdido o controle. A polícia passou atuava sem muita certeza em quem devia atirar. Vilões, mocinhos. Não se era possível diferenciar naquele dia.
— Viviane me achou... Eu a vi ao longe, abrindo caminho em meio às pessoas — uma lágrima irrompeu no olho direito do jornalista.
— Se eu não me engano, você estava lá não apenas como militante, não é mesmo? Você estava lá também para cobrir o evento.
— Foi quando aconteceu...
— Sim... — A voz do homem de preto foi se perdendo em um abismo sem fim conforme a cena daquela tarde trágica do dia três de janeiro de mil novecentos e noventa e seis invadiu os pensamentos.
A multidão, a gritaria, a guerra. Uma voz feminina chamando seu nome, Viviane abrindo caminho em sua direção. A jovem que se colocou entre ela e sua passagem, a bomba. A fotografia.
— Foi um verdadeiro golpe do destino seu você ter ido como jornalista aquela tarde. A foto que seu companheiro de reportagem pegou ficou realmente muito bonita. Viviane abraçada àquela jovem. Uma menina que devia ter seus recém completos quinze anos. A cena que se formou naquela fotografia valeu ouro. Como se Viviane tivesse jogado seu corpo para proteger a jovem.
— Viviane não quis proteger aquela menina.
— De fato, não — riu-se o homem de preto — Como eu disse antes, Viviane não era uma mulher virtuosa. Mas para a matéria que seu jornal lançou no dia anterior, isso pouco importou. A matéria que você foi chamado a escrever, juntamente com o obituário dela.
— Viviane não conhecia a menina, sequer se importava com ela. Ela apenas cruzou seu caminho, caiu quase em cima dela.
— Sua esposa tentou empurrá-la, não é mesmo? Tirá-la do caminho.
— Mas antes que conseguisse, aquela bomba lançada não se sabe por quem explodiu a poucos centímetros dela. As duas e mais alguns forram arremessados longe. Ela não teve chance. E acabou caindo por cima da garota, abraçando-a. Qualquer um diria que ela a estava protegendo.
— Equivoco esse que você não fez a menor questão de esclarecer, não é, meu caro obituarista?
Silêncio...
— A reportagem foi comovente. A mulher morta tentando proteger a menina. Quais foram as palavras? Ah sim: “a prova de que ainda é possível se conservar um pouco de humanidade em meio à barbárie”. Você sempre foi muito bom com as palavras.
“Bastou esse artigo ser lançado no dia seguinte, com a foto estampada na capa, que o país se comoveu. As classes que até então se mantiveram em silêncio despertaram. Clamores pelo fim da guerra ecoaram de todos os cantos. Os grupos armados perderam tanto sua credibilidade que começaram a ser sufocados até desaparecerem. O equilíbrio se restabeleceu e as ameaças de intervenção estrangeira não tinham mais fundamento. Viviane se transformou em um mártir da paz”.
— Não foi a intenção dela.
— Não foi, de fato — o homem de preto respirou profundamente, como se estivesse ponderando o que diria em seguida — Dizem que o inferno se esconde atrás das boas intenções. Nesse sentido, casos como esse me fazer perguntar se o paraíso não se encontra escondido atrás das piores.
— Viviane não foi uma heroína.
— Não foi — o homem de preto quase foi capaz de rir com essa afirmação — Então olhe lá fora.
Os olhos do obituarista se encheram de lágrimas quando este deu de cara com o mundo que conhecia. Ali, o barulho reinava, as pessoas e os animais caminhavam, corriam, bebiam, comiam... Viviam. Tudo estando como sempre esteve. Quase foi capaz de chorar, tamanha era a alegria por ver aquele mundo, tamanha era a saudade que nem sabia nutrir por ele.
— Graças a Deus — arfou. Sorrindo pela primeira vez em muitas semanas.
Ao olhar para o lado, deu de cara com o quarto vazio. Contudo, pouco se importou com a ausência do homem de preto. Chegou de repente, e assim saiu. Sem vestígios, sem recados.
A garganta estava seca. Era hora de ir à rua...
O galão de água estava vazio.

            

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